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A Teoria da Dádiva em tempos de Coronavírus

Ko Maru Kai atu
Ko Marua Kai mai
Ka ngohe ngohe

(“Dá tanto quanto recebes e tudo estará bem”)


É com esse provérbio Maori que iniciamos uma série de textos que vão abordar assuntos que merecem ser debatidos em tempos de Coronavírus, como Sustentabilidade, Teoria da Dádiva, Cadeia de Valor nos Negócios e Responsabilidade Social.


Antes de iniciarmos é importante mencionar que esse texto é resultado de percepções próprias acerca das questões levantadas e da consolidação de referências bibliográficas importantes sobre os temas abordados. Trata-se, ainda, de uma tentativa de estudar, apreciar e digerir o campo teórico com o objetivo de incorporá-lo como prática na gestão do meu próprio negócio, a Teiares.


A crise do Coronavírus têm inúmeros viéses de interpretação, que variam de acordo com a perspectiva com que se olha a questão. Muitos falam em crise do capitalismo, alguns mencionam o desgaste do sistema neo-liberal, outros trazem à tona os impactos do Antropoceno sobre o equilíbrio dos sistemas ecológicos. Cada qual com sua área de conhecimento e cada um contribuindo com a sua pecinha para montarmos esse quebra-cabeça dinâmico e instável.


Pois bem, se temos que começar a tecer essa teia por um ponto, que seja pelo provérbio Maori.


Trata-se de Solidariedade, sob a perspectiva do sociólogo Marcel Mauss. Mauss foi um sociólogo e antropólogo francês. Sua obra mais conhecida foi Ensaio Sobre a Dádiva, lançada em 1925.


Em Ensaio sobre a Dádiva, Mauss relata seu estudo sobre sociedades arcaicas e constata a existência de certos padrões e métodos de troca, repletos de simbolismos, que ele passa a definir como Teoria da Dádiva. A Teoria da Dádiva está fundada sobre o tripé: dar, receber e retribuir. Cada uma dessas ações cria laços e vínculos entre os atores da relação. Ao doar ou dar um objeto (presente), por exemplo, o doador cria uma obrigação em face ao receptor, que fica de lhe devolver o presente (retribuir). Esses vínculos e doações recíprocas estabelecem relações de alianças, hospitalidade, proteção e assistência mútua e vão além de laços individuais, mas se configuram, principalmente, como obrigações e reciprocidades coletivas.


De maneira resumida, o que o sociólogo percebe a partir de seu estudo é que, anterior às trocas mercantis, as tribos, os clãs e as sociedade primitivas já se organizavam ao redor de trocas de produtos, agrados e presentes - permeados por simbolismos- e que estas eram a base dos vínculos pessoais e sociais. O resultado dessas trocas corresponde a uma das primeiras formas de economia social. Mas, segundo Mauss, o valor das trocas e das relações é superior ao valor das coisas que de fato são trocadas. Nesse sentido, a sociologia de Mauss se opõe ao utilitarismo das trocas econômicas, já que “a solidariedade produzida na esfera do mundo da vida se dá a partir de trocas não circunscritas em um espaço de tempo, traduzindo-se antes de tudo pela reafirmação dos laços socias que se prolongam por uma trajetória de sociabilidade (…)”(MARTINS E FONTES, 2008).


São essas redes sociais de solidariedade, advindas da Dádiva, que, diferentemente dos sistemas formais do Mercado ou do Estado, são regidas e se fortificam através de vínculos primários e afetivos, de relações de confiança e reciprocidade e de trocas materiais e, principalmente, simbólicas, constituindo um fenômeno complexo, multidimensional e auto-gestionário (MARTINS E FONTES, 2008).


As redes de solidariedade, estruturadas muitas vezes sob a forma de organizações voluntárias, são consideradas importante instrumento de enfrentamento de situações de crise, como tem sido observado desde o início da crise do Coronavírus.

São inúmeros os exemplos de pessoas, Organizações da Sociedade Civil, coletivos e empresas se organizando e se articulando em esforços para minimizar os impactos da crise para as populações mais vulneráveis. Iniciativas que vão desde doações individuais para compra de cestas básicas até voluntários que se prontificam a estarem na linha de frente para proteger quem mais precisa. Iniciativas que contradizem a “lógica do mercado” e que nos fazem retomar o debate da Solidariedade e da Teoria da Dádiva enquanto mecanismo fundamental na manutenção de um tecido social saudável, sustentável e justo.


O momento atual é de colaboração e cooperação e uma sociedade mais igualitária só será construída a partir da responsabilidade pelo outro.


A Teiares tem concentrado todos os seus esforços para ajudar catadores de materiais recicláveis que estão em situação de vulnerabilidade, devido à chegada do Coronavírus.


Através de uma articulação incrível entre cooperativas, amigos, parceiros de negócios e empresas organizamos um financiamento coletivo para arrecadar recursos para a compra de alimentos para catadores do Rio.





A Campanha está no ar desde o dia 21 e o resultado têm sido incrível, exatamente por causa do engajamento de toda uma rede de solidariedade.


Nesse sentido, eu finalizo esse texto com um agradecimento especial a todos que participaram da construção dessa Campanha e que a apoiaram, e com um trechinho de Mauss para reflexão:


“Foram as sociedades ocidentais que, muito recentemente, fizeram do hmem um animla econômico. Mas, por enquanto, nem todos somos seres desse gênero.(...) O homo aeconomicus não está para trás, está sim na nossa frente; como homem da moral e do dever, como homem da ciência e da razão. O homem foi durante muito tempo outra coisa (...)” (Mauss, 1925)


Referências:


MARTINS, P.H; FONTES, B. Redes sociais e saúde: novas possibilidades teóricas. 2ª Edição. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2008

MAUSS, M. 1974 [1923-24]. Ensaio sobre a dádiva.

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